Essa semana tive um momento G.H, algo Lispector kafkaniano. O que Clarice Lispector, Franz Kafka e eu temos em comum? Baratas.
Todos meus dias são cansativos, mas esse em especial foi o pior. Não tenho certeza se foi segunda, terça, quarta, quinta ou sexta, mas foi durante semana passada. Voltava da faculdade como todos os dias, cheguei perto do portão de casa, puxei a corrente com minhas chaves como sempre quando vi uma sombra preta correr para um canto escuro, onde as luzes dos postes e dos carros não a alcançavam. No momento não soube distinguir aquela silhueta no escuro das vinte e uma horas da noite, mas quando dei meu primeiro passo em direção à porta ela veio na minha direção. Baratas, bichos valentes esses! Nunca vi outro animal que corresse em direção ao perigo como elas.
Talvez eu esteja equivocada ao dizer que ela corria em direção ao perigo. Minha primeira reação foi correr dela e atravessar o minúsculo canteiro vazio próximo à porta que formava um pequeno e débil fosso entre nós. Ela me encarava (eu sei que sim) e eu retribuía o olhar. Por alguns segundos estávamos estáticas esperando para ver quem daria o primeiro passo. Com o tempo percebi que não seria ela e então lentamente me movimentei novamente em direção ao portão. Ela correu e se escondeu no escuro por breves dois segundos e voltou correndo em minha direção. Eu novamente me refugiei atrás do “fosso”.
Durante essa cena deplorável mil pensamentos percorreram minha mente. Primeiro lembrei de Gregor Samsa, personagem de Kafka que durante o sono se transforma em uma barata. Inconscientemente comecei a cantar “Uma barata chamada Kafka” da banda Inimigos do Rei. Animadamente repetia: “Sim! Vem cá ficar comigo. Sim! Vem, Kafka...”. O segundo pensamento passou por “Paixão Segundo G.H.” da Clarice. Pensei na personagem comendo a barata e isso me deixou com muito nojo. Por alguns minutos pensei se eu sentiria o gosto e um momento de profunda reflexão me invadiu. No fim cheguei à conclusão de que sou maluca, mas sentiria o gosto sim. A vida não é tão insossa e, acredito eu, nem as baratas.
Depois desse mirabolante episódio descobri muitas coisas enquanto estava de pé atrás do “fosso” torcendo mentalmente para que a barata decidisse ir embora. Eu como todo ser humano (sim, estou generalizando) tenho medo de pequenas coisas. Eu enfrento grandes desafios todos os dias, mas fui incapaz de ultrapassar uma barata. Todo meu tamanho perto do meu medo injustificado não foi nada. Naquele momento eu era menor que aquele pequeno inseto. Tudo que eu desejava era uma lata de "Baygon", mas eu tinha um sapato bem ali. O sapato significava contato, o veneno mata a distância. Fiquei surpresa como a vida tem desses espantos incríveis como diz Ferreira Gullar. Por que nos distanciamos de tudo?
Depois desse "insight" e lembrando-me da infância quando Jerry do desenho Tom e Jerry disse: “ Você é um homem ou um rato?”. Perguntei a mim mesma se eu era uma barata ou uma mulher. Dei um passo para frente, atravessei o “fosso”, afugentei a barata, abri a porta e fui para casa.
(Stella Araujo)