domingo, 23 de junho de 2019

Felicidade Petrarca

Felicidade está em um abrigo
No abraço doce de um velho amigo.
Surge externa brincando num sorriso,
Não precisa fazer qualquer aviso.

É não se importar com o perigo.
Sabendo que vale a pena o persigo.
Encontro no gramado em que eu piso
E mesmo num amor que improviso.

É eterna, mas passa num instante.
Suficiente para pôr na estante
Das felizes memórias para urgências.

Semente para que você a plante.
Para que na estiagem desgastante
Não venhas a sofrer com as ausências.

(Ella Maria)

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Expondo os miúdos

Eu guardei a tua medida do Bonfim
E tu podes levar teu Pixinguinha sim.
Trocando em miúdos, já não te quero ver,
Aos teus fantasmas eu não pretendo ceder.
A nossa aliança vou guardar, ou perder.
Pode crer, lágrima minha tu não vais ver.
Saiba que os estragos foram mútuos no fim.
Não há amor que termine tão fácil assim.
Aliás, eu já encontrei meu futuro amor,
Passei a me amar já não te tenho rancor
E sobre os teus defeitos não farei alarde.
Ficou a certeza de que pra nós é tarde.
Acredite, de mim nunca foste credor,
Eu ouvi o portão fechar cheia de dor.

Expiação

Espiei por esses teus olhos pensamentos,
Lá encontrei só névoa e ressentimentos.
Tentei expiar a dor que te consumia,
Porém meu sentimento era utopia.

Éramos dois bêbados em contentamentos
Quando não preparamos nossos testamentos.
Enquanto nosso castelo então ruía
A gente nem mesmo com dor se despedia.

Sim, resignada cortei-lhe a garganta,
Sobre o finado joguei uma leve manta.
Ali jazia o amor nú, sem esperança.

Porém vira e mexe o vento nos balança
E por alguns minutos meu coração canta,
Não passa de um fantasma que a razão espanta.

domingo, 16 de junho de 2019

Religião

Nossos demônios estão no que é belo
Não se engane com a beleza divina.
Meu mal está em seus olhos que adulo,
No teu corpo que desço tal qual duna.

Tua pecaminosa voz me ufana
Queima minh'alma já não plena e digna,
Me arrasta pelo inferno em que me exilo.
Onde em grande êxtase não vacilo.

Nos cabelos por que passo as mãos,
Nos teus braços que forçam o caminho,
Sou toda teu desejo em descaminho.

Com os lábios embebidos em vinho,
Com o torpor de sentir teu carinho,
Assim não somos mais tão bons cristãos.

(Ella Maria)

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Morte e vida carioca


Enquanto a cidade e seus habitantes eram engolidos pela noite, pontos de luz surgiam no meio da decadência daquele lugar. Entre mendigos esquecidos, prostitutas tristes e trabalhadores cansados tudo era escuridão, sombra, e a beleza do que a luz iluminava. Cecília caminhava na calçada escura da rua do Lavradio em direção à avenida Chile quando avistou a Catedral de São Sebastião. Uma estrutura alta, iluminada, piramidal, como as construídas pelos maias e astecas. A visão do lugar tão semelhante ao que antes era usado pelos povos pré-colombianos para mortes violentas em homenagem a seus deuses e manutenção da vida na terra era assustadora. Distraída por seus pensamentos, a menina tropeçou em um homem de barbas e cabelos longos e grisalhos e roupa puída e suja que estava jogado no chão. Com os olhos vidrados disse-lhe: "o sacrifício somos nós". Aquilo ecoou na sua mente como um sino que badala e estende seu som pelo espaço. Um aviso mortal e cruel do mundo. Eram 22h e os executivos ou estavam com suas famílias em casa, ou nos pontos de luz que iluminavam os prédios comerciais, ou na escuridão dos relacionamentos extraconjugais. Sozinha na rua, Cecília era solidão, medo, mas também admiração pelo contraste entre o terror e a beleza do lugar. Era um quadro cruel e belo de sombra e luz em que mulheres se ofereciam aos carros que passavam perto da sagrada Catedral. Enquanto observava curiosa a paisagem e seus personagens, um olhar brilhante e cruel cruzou o seu. Era uma mulher baixinha em grandes saltos, com um vestido que lhe comprimia o corpo robusto, emoldurado por cabelos artificiais. Parecia sujeitar as outras que trabalhavam naquele ponto e gritou quando viu Cecília passar: "Aqui não entra novata, meu bem!". Sem entender o aviso, Cecília continuou seu caminho em direção à Rio Branco. A baixinha tirou não se sabe de onde um canivete que enfiou o mais fundo que pôde no peito de Cecília que caiu ensanguentada agarrando-se às grades da catedral. E aquele ato, na pequena cabeça da baixinha asseguraria a manutenção da sua existência e de seu mundo tal como era e sempre foi. A menina jorrava sangue espesso e vermelho formando uma poça e logo um rastro até as portas do santuário onde foi encontrada de madrugada por um segurança. Estava fria, branca e com as mãos estendidas em direção à cruz. A foto escatológica saiu nos jornais da manhã, cobriu o Centro da Cidade de medo e horror, mas logo a vida seguiu e o mundo girou como todos os outros dias.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Sexteto

Saudade é um aperto,
Ausência, desespero,
Desses que dói no peito
Pulsar a dor de um tiro.

Surgiu nesse sexteto,
Pelo que já é morto.
É coração já duro,
Sereno como um touro.

É um choro contido
Já está então remido
Pela morte de um filho.

É um calor alado,
Vem com a gente voado
Puxando o gatilho.