sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Garganta

Cecília desde recém nascida tinha o estranho hábito de engolir as coisas. Não é uma piada de mau gosto, caro leitor. Tudo começou quando engoliu as bolinhas internas de seu chocalho. Evoluiu quando ela engoliu o sapatinho de uma de suas bonecas, mas nada foi tão desafiador como quando sua mãe disse: “Engula esse choro, menina!” e assim ela o fez. Aquele momento talvez explicasse a curiosa carreira de engolidora de espadas da menina. Ela passou a engolir a tristeza, a dor, a mentira e se esqueceu como era viver com aquilo diante de seus olhos. Tinha que conviver com a digestão lenta daquele ácido.
O interessante era que Cecília acreditava que para aliviar seus problemas de asia precisa de algum remédio básico, aprendeu isso em uma aula de química. Por algum motivo as pessoas acham que ácidos e bases são como “yin e yang”, amor e ódio, mas ambos podem queimar, corroer, e isso os dá algo em comum.
Ela sempre gostou de ácido acético em suas saladas, mas algumas coisas simplesmente não descem, sufocam como uma espinha de peixe que prende na garganta. E sua avó dizia: “Engole essa farinha, minha filha”. A farinha nunca funcionava direito. Por mais que a espinha seguisse seu caminho natural a garganta sempre ardia. Tem coisa que desce rasgando. Alguns sentimentos ela engolia como uma dose de cachaça, mas aquela lerdeza dos fracos de bebida ela nunca sentiu, talvez por que faltasse alguma coisa a ela.
Ela gostava dos sinais de corrosão e erosão. Sempre achou que aquilo dava um ar soberano e etéreo. Talvez seja assim com as pessoas e algumas marcas as fazem quase heroicas (isso se conseguirem suportar). Não é uma questão de força, mas do ácido que você engoliu, algo a ver com o número de hidrogênios... Vai saber! Mas química nunca foi seu forte, nunca aprendeu a nomenclatura dos ácidos e bases. Fazia-se de menina esperta. Engoliu as notas vermelhas durante todo seu ensino médio e tanta falta de preocupação com a escola não a tornaria uma advogada ou médica.
Ela apresentava-se no circo Grand Maestrum todos finais de semana. As cadeiras se enchiam para assistir à grande engolidora de espadas. O resto da semana era livre e todo esse tempo e liberdade cobram seu preço. A maioria das pessoas sofre do mal da boca grande, Cecília com certeza estava entre elas. Falar demais nunca é bom. A mãe dela sempre dizia: “Minha filha, Deus te deu dois ouvidos e uma boca. Escute mais e fale menos”, mas a menina sempre respondia: “Minha boca vale por três ouvidos, fui feita para falar mais”. Nessa de falar mais sempre acabava engolindo desaforos, não que fosse difícil para ela engolir esse tipo de coisa (estava mais em sua natureza do que respirar).
Essa vida de engolidora não era das mais incríveis, mas não era tão sem graça. Quantas pessoas conseguem engolir espadas ou mesmo um desaforo? Havia uma habilidade incomum, mas desinteressante nela, como enrolar a língua, ou encostar o dedo nas costas da mão. As pessoas não dão muito valor. Ela mesma nunca se importou com isso, engoliu todo o orgulho que tinha.
O tempo passa e não perdoa ninguém, um dia todo mundo envelhece, mas um dia é muito indefinido nesse caso. Cecília envelheceu com 30 anos. Engolia as dores, as doenças, os cabelos brancos, mas nada saia dela. Na verdade nada nunca saiu. Ela estava cada vez mais cheia de tudo. Foi com 40 anos que o mundo a engoliu e ela não suportava mais engolir nada. Foi tudo tão rápido, em um "vap!" foi engolida pelo mundo, enquanto ela tentava o engolir. Alguém disse a ela que ele estava encolhendo, mas não passa de bobagem! Enquanto tentava engolir tudo vomitou a si mesma em uma sarjeta. A água passou e lavou aquele pouco material ácido e nojento, meio digerido, meio não. Não se podia esperar que o mundo coubesse em seu estômago, mas com certeza aquele era um meio de encher o vazio que havia nela.

(Stella Araujo)

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